Carta de um professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Mansoura, Egipto
Ninguém cala a voz egípcia!
Hoje, não discutirei com aqueles que querem parar esta revolução.
Hoje, não quero ouvir falar do efeito que a revolução tem na economia do país, porque qualquer criança de 12 anos te dirá: se, de qualquer modo, estou a perder 10 dólares casa dia, perder um dólar mais durante um mês para parar esta perda de 10 dólares diários é um bom investimento.
A economia está a sofrer porque está construída sobre políticas ridículas que não são reguladas pela produção e pela força laboral. É disto que a nossa economia sofre e não da revolução.
Hoje, não quero ouvir falar de agendas estrangeiras ou de quem poderá estar a tentar influenciar-nos. Nem da Irmandade Muçulmana (IM) a assumir o controlo, porque, quantos mais egípcios patrióticos formarem parte desta revolução, mais fácil será para nós reduzir essas influências de que falo.
Simples matemática: se somos 1000 na Praça Tahrir e 300 são da IM, isso representa uns 30%. Se os restantes 700 se vão embora, o que antes correspondia a 30% é agora 100% da representação. Se em vez de deixarmos a Praça aumentássemos o nosso número para, por exemplo, 3000, a IM corresponderia a 10%. Digam-me: o que pensam disto?
Hoje, não quero ouvir falar de “conseguimos quase tudo o que queríamos”, porque isso é simplesmente uma bagatela. Só estamos a caminhar passo a passo e, hoje, ainda não conseguimos qualquer concessão real.
Temos um presidente que disse que não pretendia seguir como presidente. Temos um presidente que um dia disse que pediria ao Parlamento a discussão dos artigos 76 e 77. Mas ele não disse qualquer palavra sobre o artigo que regula a supervisão jurídica de futuras eleições (artigo 88). Ele não disse nada sobre o Estado de Emergência e, indo ainda mais longe, nomeou gente que lhe é leal para o seu novo governo.
Agora temos um novo governo que não está a fazer nada para proteger as pessoas e que nos está a tratar como se fôssemos imbecis, pretendendo fazer crer que escuta os pedidos de liberdade e de dignidade. Enquanto isso, a televisão estatal emite a mesma propaganda a que nos acostumámos nos últimos trinta anos.
Temos um novo General que diz que restabelecerá a ordem, mas que não o faz. Temos um novo General que diz que vai proteger as pessoas, mas não o faz. Temos um novo General que diz: “Primeiro as pessoas têm de ir para casa. Depois, faremos tudo o que quiserem”. Como se estivesse a tentar tirar um brinquedo das mãos de uma criança oferecendo-lhe um chocolate!
Hoje, não quero escutar razões estúpidas sobre a constituição e de como seria melhor para o país se o presidente ficasse no seu gabinete por este ou por aquele artigo. E não quero ouvir: se ele se fosse agora, o Vice-presidente não teria a legitimidade necessária para alterar a constituição ou dissolver o Parlamento. Por favor, isto apenas requer uma frase! “Pela presente ordeno a supressão do artigo tal e tal e dissolvo o Parlamento”. Necessita de nove meses para dizer uma frase? A sério? E no caso de a constituição impossibilitar estas mudanças que queremos, então ele deveria alterar a constituição. ISTO É UMA REVOLUÇÃO e as revoluções mudam qualquer coisa que se ponha no seu caminho.
Hoje, não quero ouvir falar de assuntos de maioria/minoria sobre as pessoas que estão na Praça Tahrir, sobre serem pró Mubarak ou contra Mubarak. Só vos quero lembrar que, há dez dias, 99% desta população se queixava constantemente da crescente situação horrível que nos afeta a todos. Aqueles que antes tinham sentiam-se inseguros, os que não tinham morriam por ter.
A corrupção está em todas as partes da sociedade e os serviços de educação e de saúde não são dignos de animais. Assim, se de repente, és pró Mubarak, então, em primeiro lugar, não deveríamos comunicar-nos, porque de acordo com a minha memória tu nem sequer existes.
Hoje, não quero ouvir falar do “Papá Mubarak” ou dele como símbolo e que “não deveríamos derrubar os nossos símbolos”, porque é simplesmente a maior porcaria que escutei na minha vida.
Como podem ver no meu nome ou na minha conta bancária, ele não é o meu pai, nunca o foi e nunca o será. O meu pai era um ser humano respeitável que nunca roubou o que não lhe pertencia nem magoou ninguém.
E se quereis dizer que deveríamos julgar com justiça e que cada um tem coisas boas e más, então dir-vos-ei que não me importa quantos BMW circulam pelas ruas ou que todos tenhamos telemóveis agora, porque, em primeiro lugar, ele não nos comprou esses bens. E nem parece que nos tenhamos convertido em seres humanos apenas por termos conseguido não retroceder a usar os camelos como meio de transporte e a mandar sinais de fumo para nos comunicarmos. Estes não são sucessos, meus amigos. E as pontes são fantásticas, mas eu não me importo de caminhar na areia se tiver de ser.
Por fim, hoje não quero ouvir essas tontices sobre a nossa imagem no exterior. E de como melhoraria a nossa imagem se ele terminasse o seu período no poder e depois se fosse, porque posso dizer-vos que nunca antes fomos tão admirados e tão respeitados por todo o mundo como agora o somos, graças a esta pacífica, cívica e extremamente honrada revolução. Nunca antes me havia sentido tão orgulhoso de ser egípcio e nunca encontrei tantas palavras de ânimo e de admiração como nos últimos dez dias. Já sou egípcio há algum tempo, por isso, por favor, escutem a minha palavra.
Mohammad Ghoneim
Tradução: Ana Lúcia Sá.