Groupe decolonial de traduction

 

Descolonizar a Europa, por Houria Bouteldja

 

 

Faz alguns anos que nossa organização, consciente da questão política imensa que constitui o espaço político europeu, passou a investir na construção de ligações militantes em escala europeia. Graças a esses esforços e os dos militantes de diferentes países da Europa, foi possível organizar com sucesso esta Primeira Conferência da Rede Descolonial Europeia, que ocorreu entre os dias 10 e 11 de maio de 2012 na Universidade Complutense de Madri. Abaixo, nós publicamos a intervenção de Houria Bouteldja, porta-voz do PIR, no encerramento da primeira jornada de debates, consagrada a definir a perspectiva descolonial.

 

Devo começar fazendo uma confissão: eu não sei o que significa “Descolonizar a Europa”. Ou, mais bem, tenho medo de sabê-lo. Eu temo que isso não signifique: mudança de modelo civilizatório. Este é um projeto a inventar. É um projeto gigantesco. Tudo está por construir.

Este projeto é antes de tudo um projeto político. Contudo:

Existem muito poucos movimentos descoloniais na Europa. As populações originárias dos impérios coloniais, que vivem as discriminações na Europa e, consequentemente, são os mais qualificados para tocar este projeto, não estão organizadas de maneira forte e autônoma.

O campo político europeu se estrutura a partir da divisão de classe. Isso significa que nossos aliados ainda não existem. O que existe são minorias políticas sensíveis ao nosso discurso, mas eles são marginais.

 

Primeira questão: O que significa ser descolonial?

Antes de qualquer coisa, é descolonial aquele ou aquele que venceu a fascinação pelo homem branco, pela civilização ocidental.

 

Eu lhes dou alguns exemplos:

Mohamed Ali. Recordem-se de seu comentário quando interrogado por jornalistas americanas sobre a razão de ter se recusado em engajar-se na Guerra do Vietnã. Ele respondeu: “nenhum vietnamita jamais me chamou de negro sujo”. Recordem-se ainda de quando, em um programa de televisão, o apresentador lhe perguntou se, dada sua grande popularidade, ele aceitaria ser presidente dos Estados Unidos. Ele deu esta resposta memorável (que eu cito de cabeça): “O dia em que o sistema americano der a presidência a um negro, isto significará apenas uma coisa: o barco afunda. Seria como ser o capitão do Titanic”. Isto é exatamente o que ocorreu com Obama 40 anos mais tarde. O grande Mohamed Ali é descolonial.

O riso do presidente Gamal Abdennasser em 26 de julho de 1956 quando da nacionalização do Canal de Suez. Um riso de revanche, um riso de triunfo, um riso de desafio. O completo oposto do riso arrogante e sarcástico do carrasco. Uma explosão de vida. O júbilo do oprimido. A embriaguez da audácia. O inesquecível riso de Nasser é descolonial.

Zhou Enlai, o primeiro ministro chinês no começo dos anos 1970. Quando um jornalista francês lhe perguntou: “O que você pensa da revolução francesa?”. Sua resposta. Admirável: “É cedo demais para dizer”. Esta resposta, afiada e implacável, é descolonial.

Minha mãe. Outro dia, eu lia uns artigos na internet. Ela me olhava. Eu lhe disse: “É uma pena que você não saiba ler em francês, você poderia ler como eu”. Ela me respondeu com um pouco de tristeza: “Não, o que eu lamento é de não ler em árabe. Eu poderia ler o Corão”. Minha mãe (e não é pouco orgulhosa disso que fico) é descolonial.

 

Ser descolonial é, portanto, um estado de espírito emancipado. É ao mesmo tempo uma ruptura e uma libertação. É um potencial que reside dentro de nós, que se esconde no mais profundo do nosso ser e que apenas nós mesmos podemos libertar.

 

É preciso rechaçar o sistema de integração:

No plano ideológico. É preciso resistir à ideologia do universalismo branco, dos direitos do homem e das luzes, do progresso, da visão linear da História.

No plano político. Não se pode aceitar como central a divisão de classe, isto é, é preciso ter a coragem de se posicionar sobre a fratura da raça e levar em paralelo e/ou em articulação com a luta de classes, a luta das raças sociais. Em outras palavras, se trata de elaborar um pensamento crítico em relação ao marxismo. A partir de agora, será necessário analisar as relações de dominação em escala mundial a partir dos pensadores do Sul, a partir de outros saberes e experiências políticas sob dominação imperial.

No plano da posição ambivalente das populações pós-coloniais que vivem na Europa. É preciso ter em conta o fato de que os do “Sul” que vivem no Norte também são cúmplices deste sistema de exploração do Norte sobre o Sul e que eles também tiram proveito desta exploração. Por suposto, muito menos do que os burgueses e, de fato, menos que as classes populares brancas, mais eles tiram proveito mesmo assim. É preciso, portanto, interrogar-nos a nós mesmos sobre nossa participação e nossas próprias responsabilidades. Mas atenção! A consciência deste privilégio não nos deve transformar em humanistas abstratos do tipo “Cantores sem fronteiras” ou “USA for Africa”, ou ainda os “Restos du Coeur”. Isto eu chamo de humanismo branco. Isto é o que o imperialismo criou de mais vicioso em termos de boa consciência. A luta precisa ser política e radical: a justiça e o pleno controle dos recursos, sim, o pleno controle dos nossos destinos políticos, sim, mas primeiramente aos povos colonizados!

 

Segunda questão: Como ser descolonial, como descolonizar a Europa?

Apenas há uma maneira de ser descolonial, e ela é política.

Compreender que é preciso transformar as relações de dominação pela luta política.

Ter como horizonte formar uma maioria descolonial para romper com a supremacia branca.

Convencer as populações que formam o Sul no interior do Norte que elas devem se reunir em volta de um projeto descolonial. E isso não será fácil. Angela Davis dizia (cito de cabeça): “Se eu pudesse convencer os meus que eles seguem sendo escravos, os negros teriam sido libertados há muito tempo”.

Convencer os brancos descoloniais ou os mais próximos de nós a se organizarem entre eles para tocarem uma luta descolonial no interior dos seus meios: sindicatos, associações, partidos políticos... Convencer-lhes de que esta é a condição da aliança: o respeito aos espaços indígenas autônomos e o abandono da luta exclusiva contra a extrema-direita. Em outras palavras, convencer-lhes para que prioritariamente lutem pela descolonização da esquerda. A mesma conclusão: convencer os brancos não será algo fácil, visto que os brancos têm interesse em permanecerem brancos e a lutarem pela manutenção de seus privilégios. Eles têm este interesse, como os burgueses têm interesse em seus privilégios de classe, como os homens têm interesse em seus privilégios de gênero.

 

A questão que devemos nos colocar e que cabe a nós, os descoloniais, responder, é: o que ganharão os brancos com o fim da supremacia branca? O que pode compensar a perda do privilégio branco? É uma questão que eu proponho para o debate, uma vez que não possuo respostas para ela. É uma questão que cabe a nós, indígenas, pois neste período de grave crise econômica, que é também uma crise estrutural do sistema, a luta pela preservação da supremacia branca se exprime no aumento inquietante das direitas nacionalistas e populistas. O que fazer?

(http://indigenes-republique.fr/decoloniser-leurope/)

Traduzido por Vivian Souza.