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“O racismo em Colômbia se parece com o dos EUA”, afirma Angela Davis

Por César Rodrígues G. */ Especial para El Espectador de Colômbia.

 

 A famosa líder dos Direitos Humanos falou com El Espectador durante um encontro com as comunidades negras no Cauca, Colombia.

 

Angela Davis aparenta estar confortável neste rincão da violência colombiana. Fizemos a entrevista em La Toma, ao norte de Cauca, a alguns poucos passo das minas de ouro que as comunidades negras trabalharam artesanalmente durante mais de três séculos e que hoje companhias mineradoras buscam explorar, brandindo títulos outorgados pelos Estado. Os anfitriões de Davis são as comunidades sobre as quais existem ordens de despejo e cujos líderes foram ameaçados e despejados por se oporem as ordens.

La Toma é um barril de pólvora e Davis sabe disso. Provavelmente por isso se sente a vontade aqui, já que cresceu na “Colina Dinamite” em Birmingham, Alabama, em seu coração sulista norte-americano, onde a Ku Klux Klan explodia bombas no bairro negro dos ativistas do movimento pelos direitos civis, no início dos anos 1970.

La Toma é um punhado de casas encravadas em cima da montanha, onde se avista ao longe o município de Suarez e o reservatório de Salvajina. Os testemunhos que Davis escutou durante todo o dia relatam a determinação dos afrocolombianos de não abandonar este território ancestral apesar da violência sofrida.

Por isso, Davis, o “doce anjo negro” da canção dos Rolling Stones, e ícone mundial das causas anti-raciais e feministas, decidiu vir quando escutou a história deste lugar alguns meses atrás, dos lábios de uma líder do Processo de Comunidades Negras. Aqui nada falta por fora, como aconteceu com mais de 500 pessoas que não conseguiram atender a sua conferência maciça na Universidade Nacional em Bogotá, dois dias antes. Cada mãe chefe-de-família, cada menor de idade sem nada o que fazer num sábado teria prioridade na primeira fila do centro comunitário. Logo atrás apareceu a filósofa consagrada da Universidade da Califórnia que chegou a Bogotá. Quem esteve aqui foi a ativista de Birmingham. Ouviu os testemunhos dos locais e se uniu a dança das mulheres que se moviam ao ritmo dos violinos caucanos.

 

César Rodríguez Garavito: Esta é a sua primeira visita à Colômbia. Que impressão você leva?

 Angela Davis: Estou muito feliz por ter tido a oportunidade de conhecer uma parte da Colômbia que usualmente é invisível. Conheço as lutas da população afrocolombiana e já havia escutado o que está se passando nesta região em particular. É uma experiência que jamais vou esquecer. O que mais me impressionou foi o fato de todas as gerações levarem tanta alegria em seus corações. Agora entendo a paixão com a qual lutam por suas terras ancestrais. Mas também percebi que não se trata somente de conservar o legado de uma terra, mas também de conservar uma história, uma cultura, a música.

 CRG: Que significado tem o que está acontecendo aqui para as causas que você tem defendido?

 AD: A obsessão do capitalismo pelo lucro, que não reconhece a humanidade que não reconhece a cultura, que não reconhece a história. Acredito que tudo isso é mais claro aqui, em La Toma, a luta em prol das terras ancestrais, do que em qualquer outra parte do mundo. Os povos afrocolombianos e indígenas que tentam conservar a conexão com as suas terras – que também é uma conexão com a sua história, com a sua cultura – são pisoteadas pelas empresas transnacionais. Qualquer pessoa crítica do capitalismo deve familiarizar-se com a situação aqui em La Toma e na Colômbia, porque sei que La Toma é somente um exemplo dos conflitos que estão ocorrendo por todo o país.

 CRG: Que semelhanças e diferenças você viu entre o racismo no seu país e o racismo na Colômbia?

 AD: O racismo teve a capacidade de mudar suas estruturas e ideologias através do tempo. Pode ser rastreado aos tempos da escravidão e do colonialismo, e assim, quando se vê em ação as estruturas do racismo que seguem vigentes hoje em dia no hemisfério, reconhecemos a presença dos fantasmas do colonialismo e da escravidão. Na Colômbia, existem modalidades de racismo que me recordam muito o racismo americano. Mas o que me interessa não é trazer a análise do racismo dos EUA, mas por outro lado estudar as relações entre o governo e o exército estadunidense e o governo e o exército colombianos. Por exemplo, me interessa ver as formas nas quais os EUA estão apoiando a criação de um aparato repressivo na Colômbia como o complexo carcerário-industrial norte-americano.

Isso não é algo que aconteça naturalmente. É resultado da intervenção do governo estadunidense nas políticas colombianas. Durante a minha estadia, o governo dos EUA aprovou ajuda militar para o próximo ano porque pensa que Colômbia está cumprindo com a proteção dos Direitos Humanos.

CRG: Qual é o papel da violência e da representação da discriminação racial?

 AD: O que chamo de complexo carcerário-industrial nos permite ver claramente como se utiliza o racismo para gerar lucro. De fato, a relação é evidente aqui nesta região mineira, onde os interesses da mineração comercial promovem um tipo de racismo que vá produzir grandes utilidades. Nos EUA, uma boa quantidade de empresas está envolvida no desenvolvimento e expansão contínuos do sistema carcerário, onde estão confinados 2,4 milhões de pessoas. De cada 100 adultos, um está nas celas. De cada 31, um está sob o controle do sistema correcional, seja através da prisão preventiva, em um cárcere com uma condenação, em liberdade condicional ou regime semi-aberto. Este é um fato aterrador se se tem em conta como o cárcere foi utilizado e segue sendo utilizado na chamada Guerra contra o Terrorismo, ou em Abu Ghraib, onde a tortura era apresentada como algo excepcional.

 CRG: Alguma coisa mudou com a eleição de um presidente afrodescendente nos EUA?

 AD: Algumas coisas mudaram. Não teria sido imaginar a eleição de um presidente negro a uma década, a duas décadas, e de maneira nenhuma a cem anos atrás. E isso é bom. No entanto, o mais importante das eleições de dois anos atrás foi o feito de Barack Obama se apresentar, pelo menos naquele momento, como o resultado da luta radical pela justiça.

Ele se identificou com o movimento dos direitos civis, com a luta pela liberdade, e creio que por isso acabou por atrair muitas pessoas. Agora, a questão que se passou e que há de passar é completamente diferente. Minha posição sempre foi que os movimentos massivos nos EUA e em outras partes do mundo que têm a responsabilidade de pressionar Obama para que retire as tropas do Afeganistão, por exemplo, ou para que apóie um sistema de saúde muito mais radical do que está apoiando atualmente.

Aqueles que supõem que vivemos em uma sociedade pós-racial nos EUA perdem de vista o caráter estrutural do racismo. Como dizem alguns, um homem negro na Casa Branca não compensa o milhão de negros na senzala, ou por dizer, no cárcere. Os aspectos estruturais do racismo ainda persistem na educação, na habitação, na saúde. Sendo assim, a luta continua.

 CRG: Na Colômbia existe um debate sobre os programas de ação afirmativa (bolsas de estudo, residências universitárias, etc.) para promover o acesso dos afrocolombianos ao mercado de trabalho, à educação superior, como fizeram os EUA e o Brasil. Que lições podemos tirar deste tipo de programa depois de quatro décadas de implementação no seu país?

 AD: As ações afirmativas foram propostas originalmente como um elemento de uma estratégia mais genérica contra o racismo: para combater o racismo institucionalizado, para eliminar a segregação. Penso que as ações afirmativas podem jogar um papel importante. Mas são só um primeiro passo e é necessário considerá-las como parte de uma causa mais ampla pela justiça. As ações afirmativas que somente buscam trocar a aparência de uma instituição sem tomar em conta a classe social ou o gênero das pessoas admitidas possivelmente não servem para nada.

Nos EUA se fala geralmente em buscar a “diversidade” nas instituições. Sempre tenho pensado que um conceito forte da diversidade pode gerar mudanças. Mas uma noção débil da diversidade – que quiçá se pode definir como “diferença” – não faz diferença. Por isso creio que as ações afirmativas por si só não são a reposta. Elas não devem consistir somente na inclusão de indivíduos para garantir que uma instituição não seja totalmente branca. É necessário promover e melhorar a situação das comunidades, das coletividades. As críticas contra as ações afirmativas supõe que sempre se trata de indivíduos e que alguns destes indivíduos, especificamente as pessoas negras ou latinas ou mulheres, lhes estamos fornecendo uma janela injusta por prejudicar outras pessoas. Mas não tem a ver somente com os indivíduos.

 CRG: Voltando para a conexão entre EUA e Colômbia, o que pensa do apoio dado ao Tratado de Livre Comércio Colômbia/EUA(TLC) do setor da bancada de congressistas afrodescendentes de seu país, argumentando que irá beneficiar aos afrocolombianos?

 AD: A bancada negra não representa os interesses dos movimentos que estão lutando contra o racismo, ou pelo menos não todos os seus integrantes. Não acredito que todos os membros da bancada negra estejam apoiando o TLC, porque entendem o dano que o livre comércio tem causado ao redor do mundo, especialmente através de programas de ajuste estrutural. Então o que eu levantaria e desafiaria qualquer membro da bancada negra que apóie o TLC que o diga que isto irá ajudar os afrocolombianos.

 

*César Rodrígues Garavito é Diretor do Observatório de Discriminação Racial

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Traduzido para o Português por Luciano Dalcol R. Viana.

 

Um ícone estende a mão aos mineiros de Cauca

 

Quem é Angela Davis? Depois de estudar filosofia nos EUA e na Europa, e de militar no movimento anti-racista dos “Panteras Negras” nos anos de 1960, se converteu à uma causa célebre mundial ao ser presa por suspeita na participação do assassinato de um juiz em 1970. Quando foi absolvida em 1972, ela havia se convertido em um ícone dos movimentos sociais e o personagem de canções como “Angela”, de John Lennon e Yoko Ono, e “Sweet Black Angel”, dos Rolling Stones.

Em 1981 publicou “Mulher, Gênero e Raça”, uma das análises pioneiras sobre as discriminações de gênero e raciais. Continuou este trabalho na década seguinte com o livro “O Legado do Blues e o Feminismo Negro” (1999), no qual explora a conexão deste gênero musical com o feminismo e a cultura afrodescendente. Na última década, Davis se dedicou às denúncias.

Sua cruzada hoje é pelos afrocolombianos que vivem nas minas do norte de Cauca desde 1636. O Estado privatizou dez mil hectares desde 2002 e agora quer desalojar-los. A situação tem se tornado bastante violenta: oito mineiros foram assassinados em abril e vários líderes comunitários já foram ameaçados. Existem alguns mandatos de segurança em curso.

 

Fonte http://www.elespectador.com/impreso/cultura/gente/articuloimpreso-226180-el-racismo-colombia-se-parece-al- de-eeuu-angela-davis