Negociar ou não negociar: o debate dentro da Revolução Egípcia
Esta é a transcrição do programa com Azmi Bishara na TV Al-Jazeera em 05 de Fevereiro de 2011. Aqui, ele discute a situação política da Revolução Egípcia e as estratégias que estão em jogo.
Âncora da Al-Jazeera: E conosco no estúdio está o intelectual árabe Dr. Azmi Bichara. Bem-vindo.
Bichara: Muito obrigado.
Al-Jazeera: Como você avalia esta fase, esta fase do início das negociações com o regime que é visto como controverso, no Egito?
Bichara: Primeiramente, é bom que tenhamos movido para o uso do termo “negociações” ao invés do “dialogo não-obrigatório”. Isto é em si próprio uma boa coisa, que eu agora ouço os termos “negociações” ao invés de “diálogos”, nós havíamos protestado sobre esta terminologia, porque era caracterizada como não-obrigatória, como se fosse uma conversa entre dois irmãos ou entre amigos. Esta é a primeira coisa, porque aqui existe uma luta política real entre o governo e existe uma revolução contra este regime – sendo assim, não pode haver um erro de interpretação. A segunda questão é o que você negocia com um regime em poder, com um regime que está em queda, em outras palavras, criar demandas para um regime que está em queda? Você só vai se o regime está convencido que já está derrotado, e aí você vai para negociar com ele sobre como orquestrar este processo. Se for para tentar convencer a um regime a abandonar, não existe um único regime no mundo que será convencido em uma conversa sobre a sua necessidade de abandonar o poder. Se um regime, através de palavras e ações, não está convencido de sua queda, ou pelo contrario, está tentando se fortalecer, suas instituições, prendendo os protestantes, criando barricadas, prendendo jornalistas, criando uma vasta campanha de mentiras e também oferecendo a algumas vítimas do Partido Nacional em ter alguma credibilidade, porque a ala da segurança está começando a sacrificar a ala política, o que inclui, na minha opinião, a família de Mubarak. Neste caso, o regime não está convencido de sua queda e negociar com ele lhe dá maior legitimidade.
Al-Jazeera: Talvez o regime não está convencido de sua queda, mas pode ser convencido da necessidade do seu líder em deixar o poder.
Bishara: Isso não é suficiente. Aqui, irmão Mohammad, você é daquela região e você sabe que existem dois modelos de revolução que aconteceram recentemente no mundo árabe. Tunísia não é o primeiro, antes tínhamos a Argélia. E na Argélia existia uma grande revolução popular seguida pelas eleições e o processo de democratização. E no que isso resultou? A vitória da ala militar dos que já estavam no poder [inaudível]. E aí demorou muito tempo para a abertura e o retorno. E a facção islâmica manteve-se dentro da lei e tudo mais foi sacrificado e o pais entrou em uma espiral de violência por um bom tempo. E graças à Deus que já saiu desta situação. E aí existe o modelo tunisiano: uma revolução popular que foi levada até que o final e existem aqueles que dizem que parou antes do devido, que deveria ter feito mais coisas antes de acabar, e tudo sem um banho de sangue. Ou ao menos com menor número de sacrifícios que não se comparam com o numero de vitimas que não se comparam com o processo de liberação da Argélia, quando a ala militar tomou o poder. Agora, em poucas palavras, nós queremos o modelo tunisiano ou algeriano? Porque no modelo algeriano o presidente da república renuncia e as eleições acontecem e os militares tomam o poder, e as batalhas sangrentas começam até não ter fim. A questão que precisa ser feita é, se nestas multitudes que surgiram em magnitude e entusiasmo, existe um poder maciço que procura a mudança do regime. O regime deve conceder a sua queda. Agora, o regime quer uma saída honrada ou não – este deve ser um tópico das negociações. Se eles quiserem uma saída honrada, deve haver um acordo em uma fase de transição para que as coisas não escalem para a resolução de problemas [através da força]. Agora, isto não pode ser conseguido se a revolução se transformar em um conjunto de demandas e existe uma competição entre as várias partes políticas querendo a sua representação. Nisto, irmão Mohammad, nós sabemos através da arena palestina do jogo de representações. O oponente joga com o jogo de representações e se infiltra em você através deste jogo. Quem faz a representação (estes ou aqueles) cria o conceito de finitude entre as partes que foram convidadas para a reunião e as que não foram, quem representa e quem não. Este processo logo se transforma em uma competição de quem consegue ser mais agradável com o regime para visando, no futuro, a escolha como parceiro. O processo irá se transformar em poucas semanas, em uma competição de compromissos. Então este jogo de representações deve terminar e começar as negociações com o regime em como ele deixará o poder. E a partida do regime não significa como o presidente deixa o poder. Claro que esta é uma parte do processo, é uma questão simbólica que todos clamam em suas demandas. Mas quando as demonstrações começaram no dia 25 [de Janeiro de 2011], as pessoas queriam o fim do regime. O regime, os seus principais símbolos são Mubarak e sua turma, o partido e os aparatos de inteligência.
Al-Jazeera: Alguns consideram que o regime já caiu, por exemplo, Haykal diz que praticamente o regime já não existe, em um sentido simbólico.
Bichara: Em um senso simbólico, eu concordo. E talvez a revolução já tenha atingido metade do caminho, ou até mais, mas agora o perigo vem da queda ser somente no nível das aparências e ser depois tomado pela ala militar. Agora existe uma manipulação massiva das ações dos protestantes em curso, questionando e introduzindo atores que têm perspectivas diferentes, idéias de fatiga entre os protestantes, enquanto a verdade, os fatos precisam ser abordados de forma diferente: quem orquestrou a revolução confronta e declara que a idéia que você [Mubarak] mantendo-se no poder gera um custo de bilhões diariamente ao país. É o resquício do seu poder que leva ao déficit dos suprimentos necessários aos cidadãos comuns. A revolução indica que cada dia que você se mantém no poder causa mais e mais sofrimento para o povo. Além disso, a revolução não é um protesto pacífico. A revolução significa que o sindicato de jornalistas se reúne e elege uma nova liderança porque o anterior havia sido imposto, o que significa que a imprensa independente e os atores midiáticos como vocês se reúnem e declaram que nós queremos dar a nossa própria opinião e nós nos recusamos a ser liderados por um ditador e por aqueles indicados pela administração anterior, pelo aparato de segurança, pelo aparato de Omar Suleiman, com quem eles agora estão negociando. Trabalhadores das fábricas controlam o seu ambiente de trabalho e comandam as fábricas, o [aumento do] número de estudantes universitários que são sujeitos a supervisões de segurança (existe uma ordem legal que previne esta supervisão), mas deixamos que eles executassem estas ordens legais. Então a legitimidade popular precisa tomar conta não somente da Praça Tahrir, mas em todos os aspectos da vida egípcia. Isso faria o regime sentir que esses não são somente protestos pacíficos com uma quantidade considerável de demandas com soluções a serem exigidas do atual regime, o qual somente dá mais legitimidade ao regime de Mubarak. Por exemplo, eles querem que o regime, o que também está na declaração da Irmandade Islâmica, eles querem que o regime reconheça a honra e o patriotismo dos protestantes. Este é um pedido para o regime! É o mesmo que dizer que você quer uma declaração do regime que eles não são agentes estrangeiros; então você está tomando a acusação do regime de ser um agente estrangeiro seriamente, o que é uma tática que o governo faz contra todos os seus oponentes. Ao contrário, é você que deve acusar o regime de ser comandado por interesses externos e que o fez não para representar a soberania nacional do país, mas ao revés, trazendo os EUA e perdendo a soberania sobre o Sinai e vendeu petróleo por um terço do preço internacional à Israel. O que aconteceu é que existe uma enorme mudança que não se esperava por aqui acontecendo agora. A juventude do país e sua população inteira estão agora em um estágio revolucionário, enquanto os partidos políticos ainda estão usando a velha linguagem na qual eles tem lidado com os regimes. Declaradamente, eles querem sentar e discutir algumas demandas com um ou outro, talvez alguns grupos, mas certamente não com a Irmandade Muçulmana, mas alguns ainda sentem uma grande honra em sentar com representantes do regime. Isso precisa mudar. Este regime está de saída e são eles que precisam buscar legitimidade das massas, e não o contrário, e termos devem ser forçados neles ao invés de requerer algumas demandas. Isto significa que termos devem ser impostos ao regime para a sua saída, o mecanismo...
Al-Jazeera: Mas Omar Suleiman obteve sucesso nas negociações com os partidos em uma teia de detalhes, porque se ele conseguiu que eles negociassem os dilemas daqueles que vieram e dos que não vieram, e no reconhecimento de quais são os problemas, no fim, é ele quem está ganhando até agora.
Bishara: Este é o caso. As pessoas vão para a Praça Tahrir e discutem quem representa a juventude e quem foi e quem não foi e, no final, é um jogo que nós sabemos onde vai dar, e este jogo tem sido jogado por muitos. Primeiro, em uma forma de ir negociar, existe um número de questões que podem ser direcionadas sem nenhum debate constitucional ou intelectual, como por exemplo, como negociar para a libertação dos prisioneiros políticos. Esta é uma coisa que eu realmente não consigo entender. Nossos amigos estão presos! Como é que isso seja possível? Agora, este regime tem prisioneiros em cadeias e você vai e pede para o [inaudível]. É verdadeiramente inacreditável. Logo, você coloca como condição que antes de qualquer negociação deverá haver a soltura de todos os prisioneiros políticos, especialmente aqueles dos eventos recentes, que incluem os líderes jovens e os jovens do movimento 6 de Abril. Então como é que você aceita que existe um debate constitucional em como terminar o Estado de Emergência, se o próprio Estado de Emergência é anticonstitucional? Existem um considerável número de pendências que exigem uma seriedade antes de qualquer negociação. A abordagem tomada pelo regime é: nós negociamos de maneira que o presidente possa deixar, ou para incluir as pessoas, todos os especialistas constitucionais no debate o qual os artigos constitucionais são aceitáveis. Isso não é uma revolução: é uma discussão constitucional e intelectual que acontece no Conselho do Povo. Revoluções mudam o regime e o regime muda a constituição. Não existe um regime que mude a constituição enquanto existe uma revolução contra ele. O que você está dizendo é impossível. É como dizer: “Por favor, nos permita passar por uns obstáculos constitucionais, e isso significa que não podemos mudar o presidente neste momento. Até por que um presidente que não foi eleito não pode mudar a constituição”. Você acha que este tipo de discurso seria aceito por pessoas politicamente experientes, incluindo intelectuais? Acha que esta conversa aconteceria? Baseado nisso, você pode dizer que tudo que este regime e todas as suas discussões doutrinais e sua constituição são parte do passado. Nós queremos um novo regime que criará uma nova constituição, ou um novo Conselho do Povo que crie uma nova constituição. Para isso, nós queremos uma nova fase direcionada para um partido neutro, o chefe da corte constitucional ou outra pessoa que lidere este período de transição em como mudar e então eleições acontecerão e o Conselho do Povo pode ser eleito no qual ou irá mudar a constituição ou criar uma nova. Sobre os debates doutrinais, com quem será? Com aqueles que costumavam mudar a constituição da noite para o dia quando e como lhes apetecia, e criavam novos artigos durante a noite. Esta fase tem que acabar. Eu estou surpreso em ouvir conversas neste sentido, e alguns dos que estão seguindo neste debate são sinceros, diligentes e batalhadores. Eu temo e nem quero pensar que tais sacrifícios não dêem nenhum resultado. Ao contrário, agora é o tempo de transição, você está no meio do caminho, você fez parte de uma revolução. Este não é um movimento de protesto. Você não pode, você tem a responsabilidade, você tem que continuar. Eu entendo que é algo doloroso e difícil e tudo mais, mas você assumiu a responsabilidade, então tem que terminar a caminhada.
Al-Jazeera: [Inaudível] Então o que ouvimos de uma pessoa com quem falamos na Praça Tahrir foi “nós não queremos formar uma liderança para esta juventude, ou elegê-los para que eles não entrem na teia de detalhes, nós não vamos falar com ninguém até que as nossas demandas sejam atendidas”.
Bishara: Eu não duvido que durante a batalha, líderes serão formadas e alguns indivíduos surgirão. Você, por exemplo, quantas pessoas os quais os nomes nós não conhecíamos, que surgiram e falaram pelos jovens, e dentre os líderes da Irmandade, e aqueles do Partido Karamah (Dignidade, em árabe), e do movimento Kifayah? Líderes surgem e estes são certamente leais e eles surgem durante a luta. Eu não vou nem mencionar o movimento dos [inaudível]. Estamos aqui para providenciar uma análise da perspectiva dos interesses nacionalistas e patriotas, mas existem revoluções onde em uma demonstração milhares são assassinados até que o exército decide tomar um dos lados, e eu não quero dar exemplos. A Revolução Iraniana, por quantos meses? A Revolução Francesa, como terminou? E por aí vão, esses foram casos onde existiram menos mortes do que quando Reddah tomou o poder. Neste último caso, como o exemplo da Argélia, acabou terminando com custos humanos muito maiores do que se a situação tivesse sido acalmada, porque uma vez que a ala do exército tomou o poder e se consolidou e começou com as manipulações, depois serão assassinatos e campos de concentração e outras coisas mais. E todos esses debates doutrinais serão denigrados por estes senhores. Eles jogam este jogo por seus próprios interesses. Então vamos colocar os debates doutrinais junto com a mudança constitucional de lado por agora. O regime precisa ser mudado para que a constituição possa ser mudada, e não o contrário.
Al-Jazeera: Mas existe, talvez, alguma falta de apreciação. Talvez a erupção da Revolução Egípcia depois da Revolução Tunisiana levou a alguns a imaginar que a queda do líder do regime possivelmente ocorresse bem rápido, como no caso de Bin Ali. Então, existe hoje alguma percepção errônea ou algum desapontamento que o cara ainda não saiu, levando em consideração que o regime egípcio não é um regime fraco ou pouco sofisticado?
Bishara: Exatamente. Eu concordo completamente com a sua análise. Aqui existiam ramificações: a intelectual, e a afetuosa, ambas ligadas com a temporalidade com o caso tunisiano. Parte destas são positivas, na qual as pessoas foram mobilizadas, mas ainda outros aspectos são negativos. Ainda assim em Tunis, demorou um mês. Não foi uma coisa rápida. Para você, no caso ou em uma cobertura ao vivo, chamou a atenção das pessoas um tanto quanto tarde. Sidi BouZeid já estava protestando por semanas até que foi seguido por outras cidades até chegar a Rua Bou Rgebah, mas quando chegamos lá, a contagem regressiva para o regime havia começado. Aqui nós entramos na Rua Bou Rgebah no primeiro dia. Aí eles queriam acelerar e chegar na Praça Tarhih no primeiro dia. Já não era possível conceber a entrada na Rua Bou Rgebah. Aqui eles entraram na Praça Tahrir logo no início da contagem regressiva; 6 dias, 9 dias, o que é muito. Eles precisam de um pouco de paciência. Este problema precisa de tempo para ser resolvido, e não é tempo esperando, é tempo desenvolvendo ações as quais o regime não está preparado, como revolucionar aqui e ali, colocando a causa adiante aqui e ali em todos os aspectos até que o regime perceba que terá que sair ou pela força ou através da negociação com o povo em algum tipo de arranjo que pode salvar o país e salvá-lo, porque no fim, você estabelece comissões de justiça com o objetivo de conseguir acordos com o povo. Você não quer incentivar a vingança pessoal ou a punição de indivíduos, o que você quer é uma transição pacífica do poder. Ele senta e negocia, não as demandas do povo, mas nos mecanismos de transição de poder porque ele entende que ele já terminou e o poder precisa ser transferido. Aqui, isto ainda não está acontecendo, então todo essa conversa de diálogo e tudo mais [é inútil].
Al-Jazeera: Agradecemos ao intelectual árabe Azmi Bishara sua presença no nosso estúdio.
Traduzido por Luciano Dalcol-Viana.